Em “Thelma & Louise”, o cultuado road movie feminista de 1991, as personagens-título interpretadas por Geena Davis e Susan Sarandon assassinavam um agressor durante uma tentativa de estupro e, sem evidências para alegar legítima defesa, saíam em fuga desenfreada, cruzando o empoeirado Oeste americano rumo ao México, numa aventura cheia de adrenalina e catarse, vencedora do Oscar de Melhor Roteiro.
Vinte anos depois, a cantora Rihanna remete ao mesmo tema no videoclipe “Man Down”, em uma experiência considerada polêmica. A canção em estilo reggae tem trechos que dão muito a sugerir – “Mamãe, eu atirei e matei um homem… Podia ser o filho de alguém e eu tomei seu coração quando apertei o gatilho… Agora eu preciso sair da cidade” -, e um vídeo que faz jus ao conteúdo.
Na historinha que motiva a música, ela atira no homem que tentou lhe abusar sexualmente no dia anterior.
A simples menção do tema foi o suficiente para gerar desconforto. O grupo Parents Television Council, a campanha Enough Is Enough e o instituto Industry Ears solicitaram ao canal pago americano Black Entertainment Television (BET) e à sua companhia Viacom (dona da MTV e da Paramount) que parassem de exibir o vídeo.
Até o momento, a MTV americana não transmitiu o clipe, e um representante do canal afirmou que o assunto está sendo debatido internamente. O próprio Youtube estaria insatisfeito com o vídeo e considerando substitui-lo por uma versão editada.
O incômodo se tornou ainda maior pelo fato de Rihanna ter sido, ela própria, vítima de violência doméstica. Em 2009, ela foi agredida pelo ex-namorado, o cantor Chris Brown, que deixou seu rosto inchado de pancadas. Ele se declarou culpado das acusações, desculpou-se publicamente e cumpriu as horas de orientação psicológica e serviço comunitário a que foi condenado pela justiça.
Segundo um representante da Industry Ears, “se Chris Brown atirasse em uma mulher em um novo vídeo e o canal o exibisse, o mundo ia interditar imediatamente. Rihanna não deve ter passe livre”. Na mesma declaração, o instituto, que se posiciona contra imagens negativas na mídia, comentou que jamais testemunhou “a execução de um assassinato tão frio e calculado no horário nobre”.
O Parents Television Council foca-se menos no clipe em si e mais em suas repercussões. “Em vez de dizer às vítimas para procurar ajuda, Rihanna lança um vídeo que mostra que o assassinato é uma retaliação aceitavel”, condenou o grupo.
A BET e a Viacom tem se esquivado de rebater as acusações, mas Rihanna em pessoa não tem ficado calada. Em seu perfil do Twitter, a cantora chamou atenção para a seriedade do tema que abordou, alertando sobre os perigos eminentes do estupro.
“Garotas e mulheres de todo o mundo, nós somos muitas coisas. Nós somos fortemente inocentes, divertidas e vulneráveis, e às vezes nossa inocência pode nos levar a ser ingênuas”, escreveu Rihanna. “Nós sempre pensamos que NUNCA acontecerá conosco, mas, na realidade, pode acontecer com QUALQUER uma de nós. Então garotas, tomem cuidado”, completou.
Rihanna prosseguiu utilizando a rede social para articular sua posição. “Nós todos sabemos como é difícil e constrangedor nos comunicar sobre assuntos delicados com qualquer um, especialmente com nossos pais. Nós não podemos esconder nossos filhos da sociedade, ou eles jamais vão se adaptar. Esse é o MUNDO REAL”, twittou a cantora. “A indústria da música tem a liberdade de fazer arte, então DEIXE-NOS. É o nosso trabalho nos assegurar que eles não acabem como NÓS”, encerrou.
Posteriormente, Rihanna também compareceu a um programa da BET para se fazer ouvir fora dos 140 caracteres do Twitter. “Estupro acontece em todas as partes do mundo e nós continuamos escondendo e agindo como se não acontecesse”, disse Rihanna durante a entrevista. “Meninos e meninas se sentem impelidos a esconder isso de todo mundo, incluindo os professores, os pais e os amigos. Isso só dá mais poder aos agressores”, garantiu a cantora.
Ela explicitou que “Man Down” é uma tentativa de conferir poder às mulheres, mesmo que não cite diretamente o estupro em sua letra. E, segundo Rihanna, as pessoas que interessam estão captando a mensagem. ” Estou muito impressionada com o fato de os meus fãs entenderem. Isso era muito importante para mim, é uma história para eles”, disse.
Sobre a maneira com que as situações se desenrolam no clipe, Rihanna também é favorável. “Eu não queria fazer um vídeo polêmico. Queria fazer um mini-filme, algo visceral e artístico”, explicou.
Em relação à personagem que comete o assassinato, a cantora garante que “não se trata de uma assassina de sangue frio”, já que a canção claramente expressa o arrependimento pelas ações. “Eu nunca pensei que seria capaz, o que aconteceu comigo, por que eu puxei o gatilho?”, diz a música.
Rihanna também marca claramente a diferença entre realidade e ficção. “Fui abusada no passado e você não me vê matando pessoas por aí”, aponta. “Nós nunca imaginamos que um ato de violência possa acontecer conosco, mas pode. Então meninas, fiquem alertas e me escutem”, encerrou.
Jodie Foster, que ganhou o Oscar ao ser estuprada em “Acusados” (1988), também já fez justiça com as próprias mãos nas telas, em “Valente” (2007). Não houve, porém, campanha para boicotarem nenhum dos dois filmes.
O que incomoda em “Man Down”, curiosamente, é sua qualidade cinematográfica. Sombrio, violento, executado como uma porrada, o clipe é praticamente um curta-metragem. Muito bem interpretado pela cantora e dirigido com realismo por Anthony Mandler – responsável por outros clipes de Rihanna, além de clássicos de Jay-Z, Snoop Dogg e Eminem – , ele não é idílico com a fantasia de vingança de “Thelma & Louise”, mas amargo como as notícias dos telejornais sensacionalistas da hora do almoço.
Rihanna “shot a man down”, Bob Marley “shot the sheriff” e Johnny Cash “shot a man in Reno just to watch him die”. Cash até cantou seu clássico country numa prisão cheia de assassinos, gravou o concerto e lançou em disco ao vivo, um sucesso aclamado que pode estar na coleção de muitos dos porta-vozes das entidades que protestam contra a má influência de Rihanna.
Uma coisa é certa: Rihanna tornou-se relevante. De vítima real de agressão, passou a ser acusada de promover agresssão – na ficção! A sociedade americana se recusa a lhe permitir a catarse, o revide artítisco. E esta discussão vai longe.
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